sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Diário de Vita Sackville parte IV

1º de agosto de 1920

Vou passar depressa sobre esta parte: é a mesma coisa na vida de qualquer pessoa. No dia 1º de outubro de 1913, afinal casamos, na capela de Knole, que eu mesma arrumei como se fosse um teatro... Rosamund conseguiu sobreviver ao episodio e até foi capaz de esconder sua magoa de maneira esplendida, no dia da cerimônia. Violet não compareceu. Eu não tinha lhe dito nada sobre o noivado, e assim a doce criatura só ficou sabendo do casamento pelos jornais. Escreveu-me cartas sarcásticas onde se destilava seu indisfarçado rancor...

Em 6 de agosto de 1914 deu luz a Bem. Nenhuma nuvem, nenhuma briga. A vida era simples e boa. Violet aparecia de vez em quando, mas seu espírito continuava distante do meu, embora nosso convívio puramente amistoso se desenvolvesse ate com mais facilidade. As correntezas perigosas já não eram tão evidentes.

Ela sempre foi muito orgulhosa e uma sonsa de primeira linha. No inverno de 1917 dei a luz a Nigel. Pouco depois a mãe de Rosamund faleceu.

Passamos o verão seguinte no campo outra vez, com Bem e Nigel. Foi a ultima temporada tranqüila vivida ali. Mas quem haveria de prever os dias agitados do futuro? ...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Diário de Vita Sackville parte III

Março de 1920

... mas tarde fui ao encontro de Violet. Ah... os detalhes! Violet sempre me trazia flores, me divertia, me ajudava a provar roupas. Corria atrás de mim com um punhal de salteador nos corredores sombrios do castelo escocês Duentreath, fingindo cenas antigas, e no final do dia vinha dormir no meu quarto. Era a primeira vez que alguém chegava a uma tal intimidade comigo, e Deus sabe o quanto nos portávamos com muito recato. Simplesmente não pregávamos o olho, era uma conversa interminável pela noite adentro, enquanto as corujas piavam ao longe no bosque. Hoje, quando ouço corujas dentro da noite não posso deixar de me lembrar da presença macia e perturbadora de Violet no meu quarto, às escuras.

26 de julho 1920

Não gosto de estar escrevendo tudo isso, mas devo sim, devo cumprir o juramento do início. Por tanto aqui vai: durante toda essa viagem pela Itália eu estava perdidamente apaixonada por *Rosamund, e o delírio continuou nos meses seguintes. Talvez fosse mais normal que eu sentisse saudades de Harold, mas, para minha vergonha, tenho que admitir que ao lado de Rosamund não sentia falta de ninguém. Eu era um péssimo caráter, incapaz de guardar fidelidade a quem quer que fosse, e ainda hoje sou assim. Mas se é que pode haver para tal inconstância uma justificativa, apresso-me em explicar que meu amor se divide em duas metades: a primeira é Harold, inalterável e eterno, e o melhor. Nunca houve um sentimento tão puro quanto o que sinto por ele. A segunda é representada pela minha alma pervertida, que bebeu o amor de Rosamund para depois tiranizá-la e abandoná-la sem a menor contemplação, minha alma viscosa que hoje absorve e domina a de Violet. Tenho ainda comigo um pedaço de papel em que Violet, psicóloga intuitiva, tenta analisar meu rosto. Diz assim: “A parte de cima é pura e grave, quase como a das crianças, mas a parte de baixo é dominadora, cheia de sensualidade, brutal. Um contraste absurdo, extraordinário, mostrando como você tem uma personalidade ambivalente de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. E esse é o ponto crucial do meu problema. Admito agora que a maldição da minha vida tem sido essa ambivalência de caráter contra a qual, por fraqueza e indulgencia, não aprendia lutar.

sábado, 29 de outubro de 2011

Diário de Vita Sackville parte II

25 de julho de 1920

Outros episódios importantes se desenrolaram naqueles anos, viajei a Florença, na Itália, ao encontro de Violet (Vêem como seu nome sempre volta!). Era a primeira vez que eu deixava a Inglaterra para uma aventura nova, diferente da viagem anual a Paris. Meus olhos se encantaram pela Itália e Violet foi o grande motivo. Até que ponto eu a conhecia nesse tempo? Não sei muito bem...

Devo tê-la conhecido muito intimamente, sim, a memória vai me voltando aos poucos. Aprendi italiano com ela, em Londres, tive-a comigo em Paris, numerosas vezes, e fiz até que representasse alguns trechos de uma peça, de minha autoria...

Antes de eu partir para Florença ela me confessou todo seu amor por mim, e eu, achando que só poderia lhe responder no mesmo tom, gaguejei: Querida!. Ai meu Deus, como até hoje me emociono relembrando os primeiros vôos do coração. Ficamos separadas durante algum tempo, e só a revi em Florença. Foi muito bonito, pois logo na chegada ela me deu um anel, que tenho até hoje, como tenho a ela.

Eu deveria estar escondendo o rosto entre as mãos, de vergonha de estar aqui relembrando um caso de amor infantil. Mas era demasiado violento para ser considerado apenas uma brincadeira de meninas, e vale como justificativa do presente. Um laço muito mais forte, muito mais legítimo, nos ligava definitivamente, naquela época como agora. Que laço seria esse, só Deus sabe, mas às vezes chego a pensar que tinha algo de sobrenatural. Violet é minha, sempre foi e será. Trata-se de uma extravagância do destino. Desde o início soube disso. Poe instinto, sentia-me sua proprietária absoluta. Ela também o sabia, menos por instinto, mas opunha todo o cuidado em me demonstrar o seu amor profundo. Eu não lhe retribuía com a mesma intensidade, tratava-a friamente, sem o menor receio de que por orgulho ou despeito um dia me deixasse. Sabia-a presa em minhas mãos. Sim. Era irremediavelmente minha, não posso dizer de outra maneira nem vou usar fraseados tolos para descrever um fato tão simples...

Diário de Vita Sackville parte I

23de julho de 1920

É claro que não tenho o menor direito de contar toda a verdade sobre minha vida, comprometendo com isso a reputação de tantas outras pessoas. Mas se o faço agora é por uma necessidade imperiosa de ser sincera comigo mesma...

Depois de lançar tudo ao papel serei capaz de supor que ninguém leia... Sim minha vida é um lamaçal, um charco um atoleiro, um território equívoco onde o sol brilha apenas nos momentos em que esse meu personagem aparece...

25 de junho de 1920

... e aconteceu um fato muito importante nesse período: fiz uma amizade, logo eu, que era avessa a me comunicar com as pessoas. Tudo se deu assim quase derrepente, para ser exata, na segunda vez em que nos vimos. Ela chamava-se Violet (Keppel, depois Trefussis), tinha onze anos, e eu treze, mas em tudo parecia mais madura que eu. Gosto de recordar, com todos os detalhes, a cena de nosso primeiro encontro. Foi durante um chá, a beira do leito de uma amiga comum que havia quebrado a perna e recebia as coleguinhas em seu quarto. Violet se dirigiu a mim e comentou qualquer coisa a respeito das flores na janela. Eu não estava ouvindo, por isso não dei a menor resposta, o que a deixou aborrecida. Já era uma garota cheia de vontades. Dias depois a mãe de Violet, a seu pedido naturalmente, conseguiu de minha mãe que eu fosse visitá-la e tomar chá. Lá fui eu, sentamo-nos em uma sala agradável, na penumbra, e conversamos sobre nossos ancestrais entre outros assuntos vagos. A saída ela me deu um beijo. Naquela noite compus uma linda cançãozinha que dizia assim: “Tenho uma amiga... tenho uma amiga...”.

Estou louca pra falar de Violet, dizer quanto eu a admirava em segredo, como me sentia orgulhosa de ser sua amiga. E que brilhante, que extraordinária, quase sobrenatural criatura era ela, e como a tratei com desprezo, e com quanta habilidade o fiz para que ainda assim ficasse ao meu lado, mas fiel do se a tivesse coberto de ternuras. Sim estou louca pra falar de Violet, mas vou contar outras histórias primeiro. Afinal, ela já vive no meu presente e se instalou no meu passado. Desde o início confiei em Violet, podia ser ardilosa, desconcertante e até incrédula, mas a qualquer momento me transmitia aquela certeza inabalável de ser minha para sempre, e isso me deixava satisfeita. Ouvia as histórias que se contavam sobre ela com um sorriso superior nos lábios: sorriso de proprietária. Se por acaso, dez anos se passassem sem uma única notícia sua, eu teria, no fim desse tempo, a mesma sublime certeza de que voltaríamos a nos reunir. Não vejam nestas minhas palavras um só traço de exagero, pois jurei que só escreveria a verdade, mesmo a mais contundente, a mais crua. É o único mérito dessa confissão.

(Interrompo a narrativa porque Violet acaba de me telefonar, e já não sei se é a Violet de quinze anos atrás ou minha apaixonada e tempestuosa Violet de hoje, a me falar com a mesma voz adorável.)